Declaração de Consenso do Workshop sobre Ética dos Psicodélicos da Hopkins-Oxford (Hopkins-Oxford Psychedelics Ethics — HOPE)
O primeiro workshop HOPE reuniu-se para discutir questões éticas relacionadas a psicodélicos em agosto de 2023 na Universidade de Oxford.
Os organizadores (BDE, DBY, EJ) visaram uma diversidade de origens e perspectivas dos participantes. Os principais palestrantes foram um estudioso indígena e um psiquiatra; outros participantes incluíram advogados e especialistas em ética, cientistas de psicodélicos, antropólogos, filósofos, empresários e agentes de redução de danos.
O workshop foi organizado devido ao reconhecimento de que o campo dos psicodélicos está num ponto crucial da sua história: as pesquisas, aplicações clínicas e iniciativas políticas estão crescendo rapidamente. O uso de psicodélicos está se expandindo, e o desenvolvimento de novos sistemas que regem seu uso já está em andamento. Essas mudanças estão acontecendo ao mesmo tempo em que ainda há incertezas consideráveis, tanto sobre os efeitos dos psicodélicos quanto sobre as dimensões éticas acerca de seu uso. Reconhecemos que há um risco significativo de danos, bem como potenciais benefícios. Os participantes do workshop discutiram os aspectos éticos dos psicodélicos, incluindo métodos de pesquisa, práticas clínicas, história, direito e sociedade, espiritualidade, comunidade, culturas e políticas que surgem em relação aos psicodélicos.
Apesar do valor dessas discussões, o grupo permanece consciente de que relativamente poucas vozes puderam ser incluídas em relação ao escopo daqueles que refletem sobre os psicodélicos e aqueles que serão impactados por eles nos próximos anos. Os participantes chegaram à conclusão de que para melhorar os resultados serão necessários esforços especiais para aumentar ainda mais a diversidade de perspectivas e origens dos participantes em eventos futuros, incluindo pacientes e usuários (não apenas aqueles beneficiados por psicodélicos, mas também os prejudicados), empresas biofarmacêuticas, comunidades indígenas com histórico estabelecido de uso de psicodélicos, e legisladores e formuladores de políticas.
Os participantes do workshop discutiram um rascunho do documento atual. Este documento pretende resumir nosso entendimento compartilhado de algumas das considerações éticas centrais relacionadas aos psicodélicos e algumas recomendações para o campo. É claro que, em alguns pontos, ainda não há consenso, e, talvez, nunca haja. Além disso, há assuntos sobre os quais o grupo foi agnóstico, assuntos que dividiram a sala e assuntos que concordamos que necessitavam de mais evidência e mais discussão entre todas as partes interessadas. No entanto, os signatários endossam as conclusões abaixo e acreditam que vale a pena transmiti-las para o campo em geral. De forma mais ampla, esperamos que esta declaração seja uma contribuição útil para aqueles que trabalham, pesquisam ou usam psicodélicos, bem como qualquer pessoa interessada nesse campo.
Introdução
A pressão nos últimos anos para utilizar drogas psicodélicas no desenvolvimento de medicamentos licenciados levou a um crescente reconhecimento da importância de definir cuidadosamente as práticas recomendadas de pesquisa, clínicas e políticas para regular seu uso clínico. Especificamente, as práticas recomendadas devem ser desenvolvidas e implementadas para minimizar os riscos para os pacientes e promover benefícios. Há também questões de justiça social que precisam ser abordadas, como a promoção do acesso equitativo e o compartilhamento adequado de benefícios com certas comunidades indígenas com longos históricos de prática com plantas psicodélicas.
Atualmente, as aplicações clínicas podem dominar o discurso sobre o envolvimento com psicodélicos. No entanto, os papéis dos psicodélicos na sociedade sempre transcenderam o domínio biomédico — e isso provavelmente continuará acontecendo. Mudanças legislativas recentes removeram as penalidades criminais para o uso pessoal de psicodélicos em algumas jurisdições, enquanto outras mudaram para permitir e licenciar o “uso adulto apoiado” fora de um contexto médico. Juntamente com essas mudanças, o interesse em usos menos formalizados de psicodélicos vem aumentando em contextos espirituais, de autodesenvolvimento e de melhoria do bem-estar, entre outros. Tais usos permanecem proibidos em muitas jurisdições e, embora nada nesta declaração deva ser considerado como um endosso de comportamentos ilegais, tais práticas continuam merecendo atenção e consideração sérias.
A análise recente dos psicodélicos dentro da ética clínica é bem-vinda, inclusive do ponto de vista legal e regulatório, mas também reconhecemos a necessidade de considerar as implicações éticas mais amplas do uso de psicodélicos em vários níveis de análise. As transgressões éticas históricas acerca dos psicodélicos — incluindo o MK Ultra, abusos de pacientes psiquiátricos e prisioneiros, abuso sexual e violações de limites por parte de guias e práticas apropriativas em relação às comunidades indígenas — não devem ser esquecidas nem repetidas.
A ética dos psicodélicos é complexa: as experiências psicodélicas podem ter impactos psicossociais ou espirituais profundos — e às vezes transformadores — em alguns usuários, e essas experiências são influenciadas por fatores sociais e culturais. Uma avaliação abrangente dos riscos e benefícios requer ver as coisas não apenas no nível do usuário individual, mas também nos níveis sócio-histórico, político, de saúde pública e cultural. Embora saibamos muito mais sobre compostos psicodélicos do que há 15 anos atrás, ainda há muito a aprender, e a pesquisa contínua é absolutamente essencial.
Alinhado com nossa intenção de transmitir algumas questões centrais na ética dos psicodélicos e algumas recomendações para o campo, apresentamos o seguinte como um consenso do “básico”. Em cada seção numerada abaixo, apresentamos:
- nosso entendimento compartilhado de algumas das principais considerações éticas relacionadas aos psicodélicos (ao mesmo tempo em que reconhecemos pontos de desacordo),
- nosso posicionamento em relação a esses recursos,
- e nossas sugestões para o campo.
I. Reconhecimento da posição especial das comunidades que fazem uso histórico de psicodélicos
- Reconhecemos que nosso entendimento e práticas atuais acerca dos psicodélicos foram informados pelo conhecimento acumulado há muito tempo por comunidades indígenas específicas, as quais foram sistematicamente marginalizadas.
- Embora ainda hajam divergências sobre até que ponto a prática médica moderna com psicodélicos representa uma cooptação ou adaptação de práticas indígenas, o longo histórico experimental de grupos indígenas específicos com psicodélicos lhes proporcionou perspectivas valiosas sobre salvaguardas na prática, bem como considerações mais amplas sobre o envolvimento com psicodélicos que as comunidades de pesquisa e prática podem negligenciar.
- Grupos indígenas com certos históricos de uso de psicodélicos podem estar sujeitos a riscos específicos associados ao aumento da descriminalização e da medicalização. A Declaração sobre os Direitos dos Povos Indígenas inclui a discussão de tais riscos, como a apropriação não reconhecida de elementos tangíveis e intangíveis da tradição cultural, bem como práticas extrativistas e insustentáveis que ameaçam o manejo dos ecossistemas e os modos de vida tradicionais.
- Como tal, as comunidades de pesquisa e prática têm a responsabilidade de reconhecer ou se envolver com as comunidades indígenas em um caráter de restituição, respeito e reciprocidade, incluindo a representação do conhecimento e dos interesses indígenas na tomada de decisões, e uma parcela apropriada de qualquer benefício financeiro decorrente da comercialização de psicodélicos ou de práticas ou tecnologias que devam sua origem ao conhecimento indígena.
II. Abordagem precautória para o avanço da compreensão científica
- Embora os psicodélicos clássicos sejam significativamente mais seguros do que se pensava nas décadas passadas, seus riscos ainda não são completamente compreendidos. Os danos potenciais de longo prazo e “não padrão” (por exemplo, aqueles relacionados a mudanças de crenças e perspectivas, bem como danos relacionais), em particular, são pouco estudados.
- Pesquisadores, editores de periódicos e IRBs têm o dever de garantir que os estudos sejam conduzidos de forma a promover a coleta sistemática de benefícios potenciais e efeitos adversos.
- A maior parte dos dados de segurança atuais relacionados aos psicodélicos é extraída de amostras altamente não representativas: participantes homogêneos, “ocidentais, educados, industriais, ricos e democráticos” (Western, Educated, Industrial, Rich and Democratic — WEIRD) que tomam psicodélicos em contextos de testes rigorosamente controlados. Os resultados nessas amostras podem não ser generalizados para outros contextos, incluindo contextos clínicos e de “uso adulto apoiado” do mundo real, bem como outros contextos de uso em grupo e individual.
- São necessárias evidências do mundo real sobre danos, redução de danos e benefícios potenciais fora do contexto de estudos (por exemplo, contextos recreativos e de retiro), incluindo epidemiologia de qualidade, ciência de implementação e estudos comparativos de eficácia.
- O objetivo valioso de pesquisar os resultados após o uso de psicodélicos não deve ultrapassar os limites da violação da privacidade, particularmente em contextos em que o uso de psicodélicos não é totalmente protegido legalmente.
- Muitos de nós estamos abertos à expansão cautelosa de estudos e, potencialmente, à prática clínica, em populações com vulnerabilidades adicionais que podem se beneficiar dos psicodélicos. Nesse ponto, é essencial investir mais atenção e esforços para envolver vozes multidisciplinares e partes interessadas com experiência de vida para garantir proteções proporcionais. Alguns de nós defendem que não devemos “proteger” as populações vulneráveis, excluindo-as de pesquisas para que os estudos não se generalizem para inclui-las; outros argumentam a necessidade de ter melhores evidências das linhas de pesquisa existentes para permitir uma compreensão mais sólidas dos mecanismos e riscos básicos antes de expandir a pesquisa para incluir populações vulneráveis.
- Nossos julgamentos sobre os benefícios e riscos dos psicodélicos não devem ser baseados em “excepcionalismos dos psicodélico”; devemos evitar ser mais lenientes, ou mais rigorosos, em nossas avaliações simplesmente porque são psicodélicos. No entanto, reconhecemos que, em muitos casos, os psicodélicos oferecem uma oportunidade de refletir sobre as práticas e normas sistêmicas mais amplas às quais estamos acostumados. Por exemplo, alguns estudiosos apresentaram preocupações sobre a qualidade da pesquisa médica e científica em geral (alegando abertura e transparência insuficientes, conflitos de interesse não revelados, muita flexibilidade na análise estatística e nos relatórios de resultados, etc.). Por ser um campo relativamente jovem, acreditamos que a ciência dos psicodélicos tem a oportunidade de estabelecer padrões mais altos para a pesquisa em geral, e pedimos aos agentes deste campo que aproveitem essa oportunidade.
III. Reconhecimento da legitimidade de motivações diversas para se envolver com psicodélicos
- Apesar do status controlado das drogas psicodélicas na lei, as pessoas podem ter razões legítimas para querer usar psicodélicos que não estão incluídas nas suas aplicações clínicas, incluindo fins espirituais, de bem-estar, de autodesenvolvimento e recreativos.
- Há diferentes contextos do uso de psicodélicos dependendo dos diferentes perfis de risco e considerações éticas (por exemplo, uso clínico em menores de 18 anos e uso para desenvolvimento pessoal ou profissional). Devemos não apenas procurar entender como otimizar as taxas de risco/benefício, mas também atender cuidadosamente aos novos desafios que acompanham os novos contextos.
- A grande maioria dos usos de psicodélicos são, e provavelmente continuarão sendo, os usos não clínicos. Embora rejeitemos a estigmatização dos usuários de drogas, reconhecemos que algumas práticas e padrões de uso são prejudiciais. Desenvolver uma melhor compreensão de como reduzir os danos nesses contextos deve ser uma prioridade.
- Essa afirmação, mas não todos os seus membros contribuintes, permanece agnóstica sobre a melhor forma de regular diferentes modelos de uso, reconhecendo os desafios de evitar o excesso de regulamentação e a subregulação, ao mesmo tempo em que busca equilibrar segurança e acesso.
- Embora as decisões sobre as melhores práticas regulatórias dependam de considerações éticas e empíricas, meio século de proibição das drogas é suficiente para demonstrar que as práticas recomendadas não envolverão condenações criminais por uso pessoal ou posse de psicodélicos. A criminalização do uso de drogas, ou a posse de kits de teste destinados a reduzir os danos, foi fortemente contestada como antiética pela maioria dos membros da oficina. Reconhecemos um longo histórico de leis antidrogas que impactaram desproporcionalmente as comunidades minoritárias, especialmente, no contexto dos EUA, homens negros, latinos e indígenas e suas famílias.
IV. Necessidade de educação
- Uma ampla gama de grupos (incluindo o público, associações médicas, autoridades policiais, conselhos de revisão institucional, seguradoras e a mídia) pode se beneficiar de estar bem informado sobre os psicodélicos. A comunidade de pesquisa sobre psicodélicos tem a responsabilidade de se esforçar para fornecer informações imparciais sobre os psicodélicos, livres de preconceitos ou exageros (excessivamente positivos ou negativos), incluindo suas dimensões culturais, seus efeitos característicos, seus danos potenciais, benefícios e incertezas em torno dos seus mecanismos de ação e efeitos.
- Embora dados científicos rigorosos sejam indispensáveis na busca de resultados benéficos, a comunidade de pesquisa científica sobre psicodélicos não é a única fonte de conhecimento. O avanço da compreensão requer aprender com uma variedade de grupos, como comunidades indígenas com histórico de práticas psicodélicas, praticantes clandestinos, usuários recreativos e outros, incluindo aqueles que foram prejudicados de várias maneiras pelos psicodélicos.
- Os pesquisadores dos psicodélicos devem procurar fornecer ou disponibilizar informações de redução de danos: eles têm conhecimentos específicos relacionados aos riscos, e as pessoas podem ser atraídas para o uso de psicodélicos em contextos não controlados por causa de pesquisas recentes. O fornecimento de informações sobre redução de danos é um serviço valioso e não equivale ao endosso de práticas potencialmente arriscadas ou ilegais.
- Os psicodélicos são suficientemente distintos para que os responsáveis por sua regulamentação não familiarizados com eles possam inadvertidamente regulá-los excessivamente ou insuficientemente. As comunidades de pesquisa científica e acadêmica devem empreender esforços para apoiar os reguladores em suas tomadas de decisão, fornecendo informações sobre as dimensões empíricas e éticas relevantes dos psicodélicos.
V. Consentimento
- A natureza imprevisível das experiências psicodélicas apresenta desafios específicos para garantir o consentimento adequado.
- Incentivamos o desenvolvimento de uma ampla gama de recursos que buscam informar os usuários em potencial sobre as experiências psicodélicas e seus riscos e benefícios potenciais, incluindo dados científicos, depoimentos de usuários semelhantes e materiais educacionais. A determinação das práticas recomendadas aqui dependerá da colaboração entre pesquisadores, profissionais e aqueles com experiência de vida.
- Os psicodélicos podem ser ativadores sexuais para alguns usuários, e eles devem estar cientes disso em todos os contextos, incluindo clínico, recreativo, espiritual e outros. O toque sexual nunca é apropriado em ambientes terapêuticos, e os profissionais e usuários devem estar cientes de que “toque sexual” não é algo fácil de definir: os psicodélicos podem alterar as percepções do toque e as pistas sociais relacionadas a ele, e o que pode ser inócuo em ambientes sóbrios pode não ser durante uma experiência psicodélica.
- O grupo ficou dividido sobre o valor e a adequação do “toque terapêutico” durante uma experiência psicodélica quando existem métodos de conforto que não envolvem o toque. Afirmamos a importância de honrar qualquer recusa ao toque terapêutico. Embora toques tranquilizadores devidamente consentido na mão ou no ombro em situações de sofrimento possam ser apropriado em alguns casos, endossamos a necessidade de pesquisa sistemática sobre o seus usos adicionais durante a prática clínica e reconhecemos a importância de uma mentalidade de precaução relacionada à prática (por exemplo, o uso de um processo de consentimento de “duas etapas”, buscando o consentimento para o toque antes e durante os efeitos agudos da droga).
VI. Equidade
- Uma abordagem orientada para a equidade nos serviços psicodélicos é necessária para garantir resultados justos e servirá para evitar a perpetuação das desigualdades que há muito tempo prejudicam a prestação de cuidados de saúde à comunidades racializadas e outras comunidades marginalizadas.
- As relações entre a biomedicina e as comunidades marginalizadas têm sido prejudicadas por um longo histórico de transgressões éticas, e os esforços para desenvolver uma abordagem orientada para a equidade devem levar em conta as preocupações especiais relacionadas às drogas que afetarão esses grupos (por exemplo, o impacto da Guerra às Drogas).
- Reconhecemos que os programas de equidade social podem ter efeitos adversos não intencionais. As iniciativas psicodélicas que visam desenvolver uma abordagem orientada para a equidade nas políticas e práticas devem garantir que os programas com foco em grupos marginalizados sejam incorporados de forma colaborativa nestas comunidades, em vez de impostos à elas, e baseados em evidências (ou seja, não deve-se presumir nem a eficácia nem a falta de externalidades negativas na ausência de pesquisas).
- Esforços especiais devem ser feitos — e recursos reservados — para garantir que os grupos marginalizados sejam devidamente representados nas pesquisas e cuidados envolvendo psicodélicos, nas coortes de participantes de pesquisas, nos programas de treinamento em terapia e nos órgãos de formulação de políticas.
- Os pesquisadores e profissionais envolvidos com psicodélicos devem estar cientes do fato de que pessoas de diferentes culturas podem ter diferentes necessidades, preferências e visões de mundo quando se trata de saúde mental. O desenvolvimento de intervenções psicodélicas precisa ser culturalmente competente.
VII. Conduta profissional
- As estruturas de licenciamento para profissionais que trabalham com psicodélicos devem desenvolver e articular códigos de conduta claros e transparentes para trabalhar com essas substâncias, incluindo estruturas de responsabilidade para receber, denunciar e penalizar os transgressores. Os profissionais licenciados em profissões da área da saúde continuam sendo regidos também por seus códigos de conduta existentes.
- Além desses requisitos mínimos para a conduta ética, as comunidades de profissionais que trabalham com psicodélicos devem estabelecer códigos disponíveis publicamente, detalhando as práticas éticas recomendadas em seu campo.
- A prática ética entre esses profissionais depende não só de regras formais, mas também do desenvolvimento de culturas profissionais que se envolvam ativamente com os desafios éticos encontrados na prática. Os profissionais e pesquisadores são incentivados a se envolver em discussões abertas sobre essas questões em publicações e conferências acadêmicas, além de explorar esses aspectos nas relações de supervisão ou entre pares.
VIII. Vulnerabilidades especiais acerca do uso de psicodélicos e riscos de abuso
- Os efeitos característicos dos psicodélicos, incluindo experiências profundas, bem como o aumento da sugestionabilidade e a diminuição da autonomia, podem aumentar muito a vulnerabilidade dos usuários. É essencial que existam salvaguardas proporcionais para minimizar os riscos de abuso dessa vulnerabilidade (por exemplo, a gravação, com consentimento, de sessões de uso das drogas, com retenção e análise dos vídeos).
- Os usuários de psicodélicos em contextos espirituais e terapêuticos têm procurado profissionais para obter apoio pastoral e psicológico compassivo, e a exploração desses contextos representa um grave abuso de confiança.
- A combinação da maior sugestionabilidade, sentimentos de conexão e confiança, bem como a qualidade noética que os psicodélicos podem gerar, aumenta o potencial para outras formas de abuso e manipulação, incluindo abuso financeiro e imposição das crenças ou visão de mundo do profissional. Os códigos de conduta, claros e transparentes, relacionados a essas e outras formas de abuso devem ser centrais nos processos de credenciamento de profissionais e nas discussões profissionais em andamento.
IX. Importância da amplitude da pesquisa para o avanço da compreensão
- Entender e otimizar os impactos potenciais dos psicodélicos na sociedade exigirá não só pesquisas científicas rigorosas, mas também a consideração de perspectivas de muitos campos de estudo e partes interessadas de diversas origens.
- Reconhecemos o valor de visões de mundo diversas no estudo dos psicodélicos, incluindo outros sistemas de ontologia e epistemologia que podem ser difíceis de conciliar. O avanço da compreensão exigirá o envolvimento de vozes críticas e heterodoxas, e estamos cientes de que os insights cruciais geralmente surgem de partes interessadas que não têm o maior capital cultural e econômico.
- A pesquisa sobre psicodélicos pode ocorrer dentro de silos de disciplinas específicas, e os esforços para promover uma troca entre elas devem ser incentivados.
X. Responsabilidade e ética na comunicação
- Reconhecemos que os efeitos muitas vezes profundos das experiências psicodélicas e as atitudes frequentemente altamente carregadas de julgamentos (tanto positivos quanto negativos) sobre os psicodélicos fortalecem a necessidade da produção de comunicações baseadas em evidências e não em comunicações hiperbolizantes sobre essas substâncias.
- Como em qualquer campo, reconhecemos a existência de conflitos de interesse que podem distorcer as pautas de pesquisa e os relatórios, ressaltando a necessidade de divulgações completas e transparentes de todos os conflitos nos trabalhos acadêmicos publicados e em outras comunicações.
- As clínicas e os centros de retiro devem divulgar e deixar claro o contexto cultural, as crenças oua filosofia subjacentes e o “ambiente” em que a prática ocorre, reconhecendo que isso pode moldar a experiência psicodélica de um usuário.
- Os pesquisadores e a mídia são responsáveis pela produção de comunicações precisas, transparentes e não hiperbolizantes que aumentem a conscientização sobre os benefícios potenciais e as considerações éticas relacionadas ao uso de psicodélicos, incluindo a realidade de que ainda há muitas incertezas. Incentivamos o desenvolvimento de diretrizes de mídia para ajudar os repórteres que buscam escrever com precisão sobre os psicodélicos.
- Existe uma grande quantidade de insights e entendimentos sobre os psicodélicos em comunidades fora das instituições de pesquisa. Os pesquisadores devem reconhecer e creditar ativamente as fontes de informação utilizadas, mesmo quando vêm de fora da literatura revisada por pares.
- Os pesquisadores devem procurar tornar os resultados de suas pesquisas o mais acessíveis possível (por exemplo, publicar com acesso aberto quando possível; produzir resumos para leigos).
Com agradecimentos a Amanda Gerbasi.
Signatários
Edward Jacobs, Brian D. Earp, Paul Appelbaum, Lori Bruce, Ksenia Cassidy, Yuria Celidwen, Katherine Cheung, Sean Clancy, Neşe Devenot, Jules Evans, Holly Fernandez Lynch, Phoebe Friesen, Albert Garcia Romeu, Neil Gehani, Molly Maloof, Olivia Marcus, Ole Martin Moen, Mayli Mertens, Sandeep M. Nayak, Tehseen Noorani, Kyle Patch, Sebastian Porsdam-Mann, Gokul Raj, Khaleel Rajwani, Keisha Ray, William Smith, Daniel Villiger, Neil Levy, Roger Crisp, Julian Savulescu, Ilina Singh, David B. Yaden
Para citar esta afirmação
Jacobs, E., Earp, B. D., Appelbaum, P., Bruce, L., Cassidy, K., Celidwen, Y., Cheung, K., Clancy, S., Devenot, N., Evans, J., Fernandez-Lynch, H., Friesen, P., Garcia-Romeu, A., Gehani, N., Maloof, M., Marcus, O., Moen, O. M., Mertens, M., Nayak, S. M., … Yaden, D. B. (2024) The Hopkins-Oxford Psychedelic Ethics (HOPE) Working Group Consensus Statement. American Journal of Bioethics.
O escopo dos "psicodélicos"
Temos em mente para esta declaração os chamados psicodélicos "clássicos" ou paradigmáticos, definidos como substâncias que são agonistas parciais dos receptores 5-HT2A que produzem estados de consciência substancialmente alterados, envolvendo mudanças de afeto, cognição e percepção. Exemplos notáveis incluem a psilocibina, o LSD, a mescalina e o DMT. Algumas dessas substâncias (por exemplo, cogumelos psilocibinos, peiote mescalina) são encontrados na natureza e têm sido usados em comunidades indígenas específicas para fins cerimoniais e comunitários, dentro do contexto de sistemas de crenças e tradições de uso específicos. Outros (por exemplo, LSD, psilocibina sintética) foram desenvolvidos por cientistas no século passado e podem ter diferentes associações na cultura ocidental.
O termo "psicodélico" foi cunhado pelo psiquiatra Humphrey Osmond em correspondência com o autor Aldous Huxley. A grosso modo, o termo significa "manifestação da mente". No uso contemporâneo, "psicodélico" tornou-se um conceito mais amplo que abrange várias coisas, com exemplos paradigmáticos no centro e exemplos menos paradigmáticos nas margens, e sem um consenso se paradigmáticos devem ser considerados "psicodélicos".
Entre esses exemplos mais contestados estão o MDMA, a cetamina, a sálvia, a escopolamina, a ibogaína e a cannabis. Essas substâncias, e seus diversos padrões de uso associados, têm algumas coisas em comum com os psicodélicos "clássicos" aos quais nos referimos neste artigo: elas envolvem estados de consciência intensamente alterados que duram de alguns minutos a muitas horas, com a possibilidade de efeitos persistentes por dias, semanas, meses ou até anos.
No entanto, essas substâncias diferem em várias dimensões, como seus mecanismos farmacológicos de ação, históricos de uso e efeitos subjetivos agudos. Assim, embora alguns dos pontos éticos que levantamos provavelmente se apliquem a esses últimos exemplos de substâncias, não estamos nos comprometendo com quaisquer implicações específicas nesses casos. Na verdade, nossa declaração se refere principalmente aos exemplos paradigmáticos de psicodélicos (ou seja, psicodélicos clássicos, como a psilocibina).